Este blog exibe um conteúdo 100% católico e é administrado pelo pe. Saverio Licari. Através da arte e da iconografia oriental deseja-se divulgar a Palavra Eterna de Deus pelos novos areópagos do homem contemporâneo. Com efeito, a encarnação de Cristo é o fundamento iniludível da representação de Deus em forma humana.

Iconostásio 
A influência da cultura e da filosofia grega  na imagem cristã  
Se para o judaísmo a manufatura de imagens tinha uma conotação negativa, ao ponto de ser considerada como idolatria, o pior dos pecados, para os gregos a imagem tinha uma função central. Ela encerrava em si um caráter misterioso e até mágico.  Algumas estátuas, como aquela de Ártemis e Atenas em Éfeso, eram consideradas  acheiropoites (não feitas por mão humana) e tinham origem milagrosa.
O trato sincretista do contexto cultural grego se manifestava em vários níveis e revelava uma sociedade em crise e sem perspectivas. A mudança da sociedade, de cidade-estado à concepção de Império a partir do I século, deixara um clima cultural de grande inquietude e um desejo generalizado de salvação. O sistema filosófico, criado pela própria civilização grega, não respondia mais aos anseios do novo contexto social e, além do mais, ele era impregnado de noções pagãs e influenciado pelo avanço da cultura do Império romano do Ocidente. E será como resposta a essa necessidade do absoluto que o cristianismo das origens se apresentará na cena cultural helênica para veicular, com as devidas adaptações de linguagem e método, a mensagem evangélica cuja proposta se apresentava interessante para a cultura grega já em crise. 
A cultura clássica da antiguidade representou um modelo inicial para a nova concepção artística cristã, mesmo que ela devesse ser purificada daquele trato idolátrico e pagão inerente à representação antropomórfica da divindade.  Mas, a arte cristã não  cristianizou a imagem e a estatuária pagã, como alguns insinuam até hoje, ela foi mais além, conseguiu imprimir na imagem e na arte em geral a essência profunda do Evangelho sem por isso paganizar a Boa-Nova do cristianismo. Aos poucos, movidos pelo desejo de evangelizar, os cristãos construíram e elaboraram o seu próprio universo simbólico e artístico.[1]
A iconografia nasce nas catacumbas dos primeiros cristãos para os quais as representações visuais tinham um significado bem diferente daquelas dos pagãos. Por exemplo, o peixe, do grego ichthús, que para os pagãos simbolizava a fecundidade, para os cristãos representava a fórmula do Credo; com efeito, nas letras que formam a palavra peixe, são sintetizadas as iniciais da antiga fórmula da profissão de fé: Jesùs Christòs Theoù Yiòs Sotèr (Jesus-Cristo-Filho-de Deus-Salvador).[2] 
As catacumbas romanas oferecem-nos um mostruário bastante articulado e significativo de imagens e cenas referentes ao Antigo e Novo Testamento. Nelas encontramos a cena de Noé na arca, Daniel na cova dos leões, os três jovens na fornalha, Jonas expulso do monstro marinho, Moisés que faz jorrar água da rocha no deserto etc. Do Novo Testamento encontramos cenas da vida de Cristo, a sua infância, a manifestação dos Magos, os seus milagres e, também, imagens simbólicas da própria pessoa de Jesus como Deus-Homem. Imagens multifacetadas como a do Bom Pastor, do Cristo Pescador, Mestre Taumaturgo, Imperador etc. Outros símbolos evocam os mistérios do Batismo e da Eucaristia.[3]
Podemos afirmar com toda a propriedade que no centro da iconografia cristã é marcadamente visível a figura de Cristo percebida em todas as suas facetas humanas e divinas. A iconografia confirma a fé dos primeiros cristãos na dúplice natureza de Cristo: humana e divina. A imagem iconográfica do III e IV século resulta, deste modo, inteiramente cristológica e cristocêntrica, não existindo ainda de fato uma iconografia mariana ou dos santos antes do século V.
Além da influência das culturas existentes, a nova fé deve confrontar-se com as categorias filosóficas da época e com a cultura tardo-antiga. Há evidencias no cristianismo de pontos de contato com a filosofia platônica: dualismo entre os dois mundos, (visível e invisível, o invisível é melhor porque perfeito); princípio unitário transcendente que gerou o mundo visível; necessidade de um percurso de ascese purificatório para ingressar no mundo celeste; necessidade de uma mediação para chegar ao mundo das ideias[4]. Na Sagrada Escritura se encontram muitos textos que se aproximam desta visão platônica do mundo e de Deus. Na reflexão patrística, sempre sustentada pela Sagrada Escritura, também, se encontram vários pontos de contato com a filosofia platônica: Cristo é o novo Adão, Arquétipo perfeito, Logos do Pai; nas duas naturezas de Cristo se conjugam perfeitamente o mundo celeste e o mundo terrestre; a encarnação rende visível o rosto do Deus invisível; a natureza humana é deificada pela vinda de Deus no mundo[5].
O cristianismo nascente sentia a necessidade de possuir uma linguagem própria capaz de expressar a sua fé. Essa será a função da Sagrada Escritura, da imagem sagrada do ícone e da própria Igreja. A linguagem simbólica iconográfica supera a força da palavra falada e introduz no mundo da intuição e da verdade. A imagem expressa,  revela e ilumina a palavra escrita (por exemplo, o mistério trinitário e o ícone da Trindade veterotestamentária de Andrey Rüblev). E não só isso, a imagem envolve, também, o âmbito emotivo-psíquico e sensível, facilitando o ingresso no mundo invisível e à experiência pessoal de Deus. A arte dos primeiros cristãos não surge do nada, ela é testemunho vivo de um espírito novo, o resultado de uma evolução que se verifica em contato com as culturas do mundo antigo.  Pe. Saverio Licari




[1]Cf. PRIGENT, P. L´arte dei primi cristiani. L´ereditá culturale e la nuova fede. Roma: Arkeiros, 1997. No texto todo o autor explora a capacidade dos cristãos de apropriar-se de algumas imagens pagãs purificando-as de elementos míticos e ao mesmo tempo introduzindo elementos novos que expressassem a originalidade da revelação bíblica. 
[2]LICARI, Saverio. O ícone uma escola de oração. São Paulo: Loyola, 2010. p. 27.
[3]Cf. MENOZZI, Daniele. La chiesa e le immagini. Cinisello Balsamo (MI). San Paolo, 1995. p.12.
[4]Cf. BETTETINI, Maria. Contro le immagini. Le radici dell´iconoclastia. Bari: Laterza, 2007. p.12-15. 
[5]Cf. EVDOKÌMOV, Pavel Nikolàjevic. Teologia della bellezza. L´arte dell´icona. Cinisello Balsamo (MI). San Paolo: 1990.  p. 37.

           
Sinagoga de Dura-Europos (séc. III)
A INFLUÊNCIA DO JUDAÍSMO NA IMAGEM CRISTÃ


O Judaísmo constitui a raiz e a base do cristianismo. É no contexto judaico que o cristianismo se desenvolve. Jesus era judeu, assim como os Apóstolos. A atitude judaica diante da imagem é, em geral, negativa. O judaísmo é uma religião anicónica, a imagem era vetada, a própria Torá proibia a confecção de imagens. Deus não pode ser representado porque é o Totalmente Outro, o Deus Todo Poderoso, o Indizível e o Impronunciável. Essa proibição é baseada no Livro do Pentateuco: “Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra” (Ex, 20,3-4); mas Êxodo 20, 23 e Deuteronômio 27,15 parecem limitar esta proibição à representação dos deuses, isto é, dos ídolos. De fato, no judaísmo, nem todas as representações figurativas eram proibidas, como mostra o episódio da serpente de bronze (Nm 21,4-9) e, sobretudo, as ordens da confecção dos querubins na Arca da aliança: “Farás dois querubins de ouro, de ouro batido os farás, nas duas extremidades do propiciatório” (Ex 25,18), ordens que se repetiram na construção do Templo de Salomão (1Rs 6,23).
A proibição das imagens visava preservar o povo de Israel do perigo da idolatria.[1] Mas, em geral, a cultura judaica se mostrava tolerante com as imagens, prova disso é a descoberta, no próprio território de Israel, da Beit Alpha, uma sinagoga do VI século decorada com mosaicos representando a Arca da aliança, os signos do zodíaco, o sacrifício de Isaac, etc.
Os judeus da diáspora, sobretudo, viviam em um ambiente cultural onde a imagem exercia uma função de grande importância e, portanto, eram mais abertos à aceitação da imagética religiosa. O exemplo mais célebre é a Domus Ecclesiae de Dura-Europos, (Mesopotâmia, séc. III d.C.), na atual Síria do Norte, onde são representados  inteiros ciclos de histórias da Bíblia: a história de Moisés, de Elias, de Daniel e outros personagens do Antigo e Novo Testamento. A Domus Christiana de Dura-Europos é a primeira casa utilizada exclusivamente para o culto cristão que chegou até nós. Situada perto do rio Eufrates, foi fundada, provavelmente, pelos macedônios de Alexandre Magno. Conquistada pelos romanos tornou-se uma guarnição militar. Depois da invasão persa foi abandonada (256-257 d.C.).
Dura Europos serviu para diversas funções religiosas. Hospedou inicialmente cultos pagãos, depois se tornou uma Sinagoga judaica e uma Igreja cristã. Uma característica importante da Domus Christiana é o batistério com os seus belíssimos afrescos que nos transmitem informações preciosas sobre a arte e a vida daquela época. Aos poucos foi se estruturando um lugar de culto específico e não mais improvisado, um edifício público de culto e não mais um edifício privado. Depois que o cristianismo  tornou-se a religião oficial do Império o espaço sagrado para o culto sofreu uma ulterior evolução. Alguns edifícios da administração pública, geralmente usados como tribunais, foram utilizados como edifícios de culto. Assim, nascem as primeiras Igrejas, as Basílicas. A Domus Christiana de Dura Europos e as Catacumbas Romanas são as atestações arqueológicas mais antigas que conhecemos e por isso de extrema importância para o estudo da iconografia cristã. “A tradicional tese segundo a qual os cristãos das origens tinham herdado do mundo judaico uma total rejeição das imagens não pode mais ser sustentada hoje”.[2] 
A proibição da norma veterotestamentária de confeccionar imagens tinha sido aplicada com descontinuidade ao longo da história judaica. Nos períodos de efetivo perigo de contaminação com os povos idolátricos se afirmava a interdição absoluta, em outros momentos se manifestava uma certa liberdade. 
Historicamente os cristãos não esperaram o Edito de Constantino (313) para criar pinturas destinadas a ilustrar os mistérios da nova religião. A proibição do judaísmo foi rapidamente superada porque os cristãos entenderam cedo que a imagem desenvolvia um papel fundamental na propagação do cristianismo e o mandato missionário de Cristo era um imperativo categórico para a nova religião. A própria proliferação de imagens é prova eloquente da superação, por parte dos cristãos, das proibições do Antigo Testamento e do perigo da idolatria. 
Pe. Saverio Licari





[1]Cf. MENOZZI, Daniele. La chiesa e le immagini. Cinisello Balsamo (MI). San Paolo: 1995. p. 11.
[2]Ib. cf. p. 11.

GÊNESE E FORMAÇÃO DA IMAGEM CRISTÃ (4)


1. O ÍCONE ENTRE MITO, TRADIÇÃO E HISTÓRIA

Desde o aparecimento do ícone na história da Igreja, este não é considerado como uma mera obra artística. Os primeiros iconógrafos tratavam de retratar com cores e formas o que os Evangelhos expressavam com palavras. Para tanto, o ícone devia formular a sua identidade própria e se propor como uma forma específica de arte, distanciando-se de todas as outras manifestações de arte profana ou mesmo religiosa.
Uma lenda siríaca está na origem do primeiro ícone chamado acheiropoites (não feito por mão humana), segundo a qual o primeiro ícone de Cristo foi enviado pelo próprio Cristo ao rei Abgar V Uchama, príncipe de Osroeme, cuja capital era Edessa. O rei Abgar, doente, sofria muito e mandou o seu arquivista Ananias à procura de Jesus para pedir-lhe que o curasse. O próprio Jesus tomou um pano, colocou-o sobre o seu rosto imprimindo nele os seus traços. Esse tecido foi chamado de Mandylion (do árabe, lenço, toalha). Quando o rei olhou para a sagrada imagem ficou, imediatamente, curado.
Em seguida, o bispo de Edessa mandou que a efígie milagrosa fosse emoldurada para a veneração dos fiéis e passou a ser chamada de Sagrada face. Após muitas vicissitudes, em 944 os imperadores de Bizâncio, Constantino Porfirogeneta e Romano I, compraram a sagrada relíquia.
No dia 16 de Agosto celebrava-se a transferência do ícone para Constantinopla. Em 1204 a cidade foi saqueada pelos cruzados e a santa relíquia desapareceu. Foi nessa época que nasceram, no Ocidente, as lendas relativas a uma santa mulher que, ao enxugar o rosto de Cristo a caminho do Gólgota, teria imprimido sobre um pano traços de seu rosto sofrido: trata-se do famoso véu da Verônica, cujo nome significa apenas verdadeira imagem.[1]
Segundo o mito, portanto, o primeiro ícone tem como autor o próprio Jesus. A lenda confirma o que será demonstrado no segundo capítulo deste trabalho: A encarnação de Cristo, o seu aparecimento na terra é o fundamento teológico iniludível do ícone. O semblante do Senhor não pode ser representado, a sua imagem não pode ser capturada em uma forma, fruto do engenho humano. A sua imagem, dom do amor do Pai, presença de Deus no meio dos homens, é Kénosis (rebaixamento) de Deus.
A partir destas palavras, podemos entender como o ícone não é uma imagem qualquer, não é uma forma de arte religiosa, mas, se insere no próprio mistério da Revelação. Com efeito, desde o inicio do cristianismo, o ícone sagrado, antes de chegar à sua definição dogmática e iconográfica que conhecemos hoje, teve que percorrer um longo caminho de controvérsias, de diatribes iconoclásticas para se afirmar como imagem teológica e caminho de salvação.
Em sua origem, o ícone, teve que se deparar com um cenário histórico complexo, dentro do qual conviviam mentalidades e culturas diferentes. A formação do universo simbólico cristão sofreu a influência do Judaísmo, do helenismo, do Império romano e do paganismo. É preciso percorrer os traços característicos essenciais dessas influências para podermos entender melhor o desenvolvimento teológico do ícone na história da Igreja.  Pe. Saverio Licari



[1]Cf. LELOUP, Jean-Yves. O ícone uma escola do olhar. São Paulo: Unesp, 2005. p. 26.

GÊNESE E FORMAÇÃO DA IMAGEM CRISTÃ (3)


A imagem era uma modalidade de expressão tipicamente humana, uma forma de comunicação simbólica que, antes da escrita e da linguagem, diferenciava o ser humano dos outros seres vivos. Nesse sentido, talvez, o homem deveria ser definido mais exatamente como animal symbolicum, em vez de animal rationale. Essa definição, segundo Ernst Cassirer, um dos filósofos responsáveis pela recuperação da relevância filosófica da noção de símbolo do século XX, responde melhor a uma visão mais abrangente do fenômeno humano por abarcar o mito, a religião, a arte, a linguagem, a história e a ciência.[1]
Toda a manifestação simbólica e/ou cultural, enquanto construção tipicamente humana supõe uma força espiritual peculiar que a faça aparecer. Tal força, se pensamos dentro de uma prioridade ontológica e mesmo histórico-evolutiva, é a imaginação”.[2] A imaginação humana revela a experiência religiosa primordial através de imagens e símbolos ancestrais, rudimentares e antropomórficas. As imagens representavam, como num sonho, o universo inconsciente e transcendental do ser humano e o punham em contato com o mundo desconhecido.     
A formação do universo imagético religioso cristão está ligada, também, à visão religiosa do Egito. Os egípcios colocavam no rosto do defunto, depois do processo de mumificação, uma máscara mortuária que reproduzia o semblante do defunto. Esta técnica foi se aperfeiçoando, ao ponto, que, já antes do cristianismo, existiam verdadeiros ateliês de retratos funerários. O retrato do defunto, colocado em cima do rosto mumificado, tinha a função de mediar o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. A imaginação, concretizada numa imagem ou num símbolo, facilitava este trânsito. No século XX Padre Pavel Florenskij, teólogo, matemático e teórico da arte, define o ícone como “A janela sobre o mistério” e os Padres da Igreja oriental, defensores das imagens (ícones), o definem como “Janela aberta para o invisível”. Os retratos de Fayoum (região do Cairo atual) são um testemunho vivo desta arte primitiva. Essas pinturas funerárias egípcias que inspiraram a iconografia cristã das origens, constituem um corpus orgânico de pinturas antigas (mais de 750 retratos) que chegaram até nós, datáveis entre o I e o IV século d.C. As primeiras imagens de Cristo foram feitas em encáustica (pintura confeccionada com cera de abelha) sobre madeira, da mesma forma que os retratos funerários egípcios. A arte sagrada dos ícones decorre desse histórico primordial.
       A imagem cristã é um evento extraordinário e específico profundamente radicado nas culturas em que a Igreja das origens se estabeleceu e viveu e, ao mesmo tempo, é um fato totalmente novo, imprevisto e revolucionário no que diz respeito às culturas estabelecidas e à própria fé dos primeiros seguidores de Jesus de Nazareth. Pe. Saverio Licari 


[1]Cf. CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo:   Martins Fontes, 1994. In: BARRETO, M, A. Imaginação simbólica Reflexões introdutórias. Coleção FAJE. São Paulo: Loyola, 2008. p. 13.  
[2]BARRETO, M, A. Imaginação simbólica. Reflexões introdutórias, Coleção FAJE. São Paulo: Loyola, 2008, p. 14. 

GÊNESE E FORMAÇÃO DA IMAGEM CRISTÃ (2)


Toda a arte cristã deve ser lida e interpretada a partir do símbolo: todo o objeto representado tem um significado abstrato. A arte paleocristã não narra, não expõe histórias com um sentido lógico e cronológico, expõe ideias que devem ser compreendidas a partir da contemplação visual de uma imagem: quando se representa a figura de Cristo, de Maria ou dos santos, não se quer reproduzir o contorno real, humano, mas se quer expressar o significado que eles assumem para os fiéis. Nesses casos, não se trata de forma alguma de pinturas históricas, de lembranças fotográficas de acontecimentos passados, mas de tornar apreensível a realidade de Deus no mundo,  uma teofania de Deus em cores e formas.[1]
Por isso, o ícone é uma imagem sui generis que precisa ser compreendida a partir da espiritualidade e da realidade onde nasce. A noção de eikón abrange múltiplos aspectos do conhecimento humano, é preciso adentrar-se em suas raízes, na etimologia da sua palavra e na própria origem do homem para entendermos o seu significado.   
Ainda hoje, nós ignoramos o início da arte, da pintura e da própria linguagem. No passado, a atitude em relação à pintura e às estátuas era em geral semelhante: não as consideravam meras obras de arte, mas objetos que tinham uma função definida. Seria insensato pensar que o homem da caverna construísse objetos, utensílios e pintasse imagens ignorando a finalidade para a qual tinham sido confeccionadas. Os povos primitivos se abrigavam nas cavernas para se proteger do sol, do vento e da chuva e, também, dos espíritos que geravam, segundo eles, tais eventos. As imagens eram feitas para protegê-los de outros espíritos ocultos e misteriosos que, para eles, eram tão reais quanto os fenômenos da natureza. A pintura e a estátua serviam para apropriar-se, de uma certa forma, da entidade desconhecida. Uma mediação, poderíamos dizer, entre o mundo que eles experimentavam e o oculto que fugia dos seus sentidos. Em outras palavras, o homem primitivo faz das imagens pintadas nas paredes das cavernas um meio para estabelecer um contato com o mundo divino e misterioso. A pintura rupestre tinha a função de tornar real e palpável o sujeito representado. (Se pense as cavernas de Lascaux na França ou de Altamira na Espanha, c. 15.000 – 10.000 a.C.). pe. Saverio Licari

Cf. BERGER, Rupert. Dicionário de liturgia pastoral. São Paulo: Loyola, 2010. p. 189.

GÊNESE E FORMAÇÃO DA IMAGEM CRISTÃ (1)

A palavra ícone (do grego eikón) significa imagem, retrato, símbolo, representação, visão, metáfora. Essa nomenclatura será importante no desenvolvimento dessas páginas porque na definição e na origem desses termos encontra-se a fundamentação teológica, estética e histórica da imagem cristã. O tema da imagem na teologia e na vida da Igreja é um tema apaixonante, não obstante seja marcado por conflitos e disputas teológicas desde os primórdios. Até hoje, esse tema aparece em várias ocasiões e em vários lugares e parece estar longe de uma definição conclusiva e pacífica pelas diversas denominações cristãs. Em uma sociedade como a nossa em que a representação visual se impõe em todos os âmbitos da vida, o homem pós-moderno se encontra saturado de imagens cada vez mais violentas e abusivas, o seu olhar está contaminado e abstruso, a sua alma perdida e insegura e não encontra mais um porto seguro e estável. Essa constatação vale para a arte profana e, mais ainda, para a arte religiosa. O homem sente a necessidade de reencontrar a esperança na vida e no futuro. Essa insatisfação da vida e esse desejo de salvação se manifestam na imagética moderna, cada vez mais rápida, descartável e sem conteúdo. Por isso, a arte sagrada dos ícones toma cada vez mais o seu lugar de destaque no Ocidente civilizado e pós-moderno. A imagem religiosa, sobretudo no Ocidente, limitou-se, a partir da Renascença europeia, à descrição dos fatos da Divina Revelação e pôs em segundo plano o mistério que subtende à manifestação de Deus no mundo. É desse mistério que o homem moderno precisa e é esse mistério que o ícone sagrado reflete e expressa. O ícone é o reflexo do mistério de Deus, presença da encarnação do Verbo eterno e expressão da fé da Igreja. Belíssimo e denso de significado o pensamento de Padre Egon Sendler, jesuíta e especialista em arte bizantina: “A arte deve renunciar, então, a si mesma, deve passar através da própria morte, submergir-se nas águas do batismo para sair das fontes batismais, ao alvorecer do quarto século, em uma forma nunca vista antes: o ícone.”. pe. Saverio Licari
ÍCONES – UMA JANELA PARA A ETERNIDADE Pavel Evdokimov, um dos grandes teólogos russos refugiados na França, definiu o ícone como “uma janela para eternidade”. Não se olha a janela, mas, pela janela se olha o panorama externo. No caso do ícone, pela fé o ícone nos abre os olhos e o coração para o eterno ali figurado. O ícone é sempre dogmático: suas linhas e cores expressam um conteúdo da fé cristã. O iconógrafo não é livre para pintar os ícones, pois deve obedecer à linguagem da fé explicitada pela Igreja. Como exemplo: as possibilidades de pintar um ícone da Natividade do Senhor são quase infinitas, porém, todas elas necessariamente contém os mesmos traços e cenários. A Verdade é uma, sua expressão é múltipla. O ícone é palavra visível, pregação da verdade. Os judeus tinham uma mentalidade acústica (ouvi dizer, disseram nossos pais, eu vos digo...). Já os gregos são de mentalidade visiva (contemplar, meditar), donde a importância teológica e espiritual do ícone: eu vejo uma imagem, através dela ingresso no eterno, no divino. A Palavra se fez carne (Jo 1,14) é o fundamento da arte sacra. A Apóstolo João inicia sua Carta declarando que escreve “o que ouvimos, o que vimos” (1Jo1,1). Com a encarnação, o acústico judeu (ouvimos) se une ao visivo grego (o que vimos). Essa unidade se dá no Cristo homem e Deus: falando, se manifesta como imagem do Pai e, ao mesmo tempo, sua Palavra. Após a encarnação, toda a criação é apta para expressar o mistério, pois nela está encarnado o Filho de Deus. Toda a matéria utilizada na confecção de um ícone é matéria santa por natureza. O artista, dando-lhe forma, revela um ângulo do mistério da fé. Ele não inventa mistérios, e sim, desenha o conteúdo da fé da Igreja. O Iconógrafo-sacerdote da beleza. O iconógrafo não é um profissional que ganha a vida com ícones. Se isso acontecer, estamos apenas diante de uma obra humana, e não frente a uma obra divina. O iconógrafo pode ser comparado ao sacerdote que celebra a liturgia: “Ensina com as palavras, escreve com as letras, pinta com as cores, em conformidade com a tradição; a pintura é verdadeira como aquilo que está escrito nos livros: ali está presente a graça de Deus, porque o que é representado é santo” (Simeão o Novo Teólogo, Diálogo contra as heresias 23). “O sacerdote nos apresenta o Corpo do Senhor com os ofícios litúrgicos, com a força das palavras. O pintor o faz por meio da imagem” (Podlinnik – manual russo para os pintores de ícones). Do mesmo modo que o sacerdote se recolhe em oração antes de celebrar os mistérios, o iconógrafo autorizado pela Igreja vive um mês de jejum a pão, água e sal, buscando a purificação interior com a oração e a contemplação do mistério que irá desenhar. A primeira pincelada é de cor branca, simbolizando a Luz que o iluminará e dará resplendor ao ícone. Tradicionalmente, o primeiro ícone é o da Transfiguração do Senhor: assim como o Cristo apareceu em forma luminosa no Monte Tabor, do mesmo modo o artista transfigurará a criatura para que revele a Verdade a ser contemplada. Pe. José Artulino Besen
O ANO DA FÉ
Renovar a nossa fé significa levar a sério a Palavra do Senhor e alimentar-se do Pão da Vida que é o próprio Cristo feito homem pela nossa salvação. Significa voltar para a casa onde Deus nos acolhe de braços abertos. Católicos, voltem para a casa (Bento XVI).


SUGESTÕES PARA ORAR COM OS ÍCONES

Observando um ícone com atenção, percebemos que não conseguimos abraçar de uma só vez o seu significado e a sua espiritualidade. Será preciso escolher um detalhe, um gesto, um rosto e concentrar ali a nossa atenção. Por exemplo: diante da Virgem de Vladimir, Mãe da Ternura, podemos fixar o nosso olhar no da Virgem, ou num só olho, ou numa só pupila, perdendo-nos naquele olhar sofrido e preocupado e, ao mesmo tempo, sereno e consciente (quanto menor for o detalhe escolhido, melhor será a nossa concentração).
Antigos textos orientais afirmam que o ícone diante do qual se reza não é apenas contemplado por aquele que reza, mas ele olha o orante e o faz sentir amado. Isso não acontece, certamente, ao observador distraído ou com pressa, e nem mesmo a quem tem um olhar apenas técnico.
A união do orante com o Amado se realiza no esquecimento de si e no estupor da adoração. Se o próprio Mestre Jesus se afastava de tudo e de todos para orar, quanto mais nós devemos adquirir esse hábito. Aprende-se a rezar rezando. Se contemplamos o ícone por um tempo prolongado, ele retribuirá o nosso olhar amoroso.
A oração pessoal ou comunitária poderá articular-se da seguinte forma:
1) Um tempo para ouvir: ler o texto bíblico correspondente ao ícone.
2) Um tempo para amar: observar o ícone, escolher um detalhe.
3) Um tempo para deixar-se amar: imprimir no nosso coração e na nossa mente o detalhe escolhido para levá-lo conosco no nosso dia a dia como sinal de ternura do ícone.
4) Desejar ter os mesmos sentimentos que foram em Cristo Jesus.
Feito isso com fidelidade e amor a Deus, experimentaremos a paz que Jesus prometeu aos seus amigos. Se esta prática de contemplação se tornar um hábito na nossa vida, a nossa espiritualidade será vivida na plenitude e penetraremos nos mistérios do "Emanu-El", o Deus conosco.     pe. Saverio
Um exemplo de mensagem através da arte: "A volta do filho pródigo" (Lc 15, 11-32) de Rembrandt van Rijn.

Estamos diante de uma belíssima pintura que relata uma página da Bíblia de alta densidade teológica e espiritual. Rembrandt van Rijn nasceu em Amsterdã em 1606, compôs mais de duas mil obras quase todas de inspiração religiosa. O que de imediato impressiona na pintura é a luz que nasce do íntimo dos personagens. O rosto do pai é de uma pessoa sofrida, transfigurada pelo amor; não enxerga mais por causa da espera prolongada, de olhar o horizonte de casa na esperança de ver o filho aproximar-se; este pai derramou muitas lágrimas pelo filho. A figura do pai que se debruça no filho, a curva que esta desenha, domina a cena e lhe confere uma majestade doce e materna, firme e feminina ao mesmo tempo.
O filho se modela e se aconchega, dentro deste arco amoroso, como se fosse um seio materno. Pai e mãe ao mesmo tempo, que regenera com o calor do seu amor o filho. Olhamos as mãos paternas: expressam o que a palavra não consegue dizer; existe um acordo secreto entre as mãos e o rosto: expressam amor, apoio, solicitude, firmeza e segurança. Notamos a diferença: a mão esquerda é máscula, forte e amparadora; a mão direita é delicada, fina e leve, como a mão de uma mãe, consoladora e carinhosa. Mãos que envolvem num abraço o próprio filho; mãos da criação que renovam vidas, mãos que revigoram no sofrimento humano. É assim que Rembrandt nos fala, através da sua arte pictórica, da figura de Deus como Pai.
O filho tem a nuca raspada que parece aquela de um deportado, um excluído, um despojado de dignidade, que conhece a fundo o drama do sofrimento humano. Sem importar-se com sua aparência, ele se esconde no colo do pai e descansa. Notamos a luminosidade da testa do pai, desce em vertical na cabeça, nos ombros e se irradia pelo corpo todo do filho, envolvendo-o numa luz amorosa e restauradora. Os pés do filho, sujos e cheios de feridas, lembram o longo caminho de retorno: as sandálias usadas e consumadas fala-nos de alguém que vem de longe. Agora ele está aqui, descalço, desanimado, sem nada, sem forças..., mas o pai já tem prontos a veste, o anel e as sandálias novas.
As cores, predominantes na pintura, são duas: o amarelo ouro que simboliza luz, irradiação e vida doada e o vermelho que significa amor, calor humano e doação total. O manto vermelho púrpura nos ombros do pai lembra o Salmo 32: "O teu amor me envolve como um manto". O pai e o filho mais velhos são parecidos. Ambos têm barba e usam largos mantos vermelhos sobre os ombros. Mas que diferença dolorosa entre os dois! O pai inclina-se sobre o filho oferecendo-lhe abrigo e aconchego; o filho mais velho fica reto, rígido na postura, apoiado num bastão que alcança o chão. O manto do pai é largo e acolhedor, o do filho mais velho cai rente ao corpo inflexível. As mãos do pai estão abertas e tocam, o filho que volta, em uma atitude de bênção; as mãos do filho mais velho estão entrelaçadas e mantém-se junto ao peito em uma atitude de fechamento e de egoísmo.
A única indicação de que se trata de uma festa é o realce dado a um tocador de flauta (quase imperceptível) esculpido na parede na qual se apoia uma das figuras femininas. No lugar de uma festa, Rembrandt pintou a luz, a luz radiosa que nasce do íntimo do pai e envolve o filho. É retratada a alegria serena e tranquila, silenciosa e mística que pertence à casa de Deus. O abraço do pai, cheio de luz, é a casa de Deus. Lá estão a música e a dança. O filho mais velho fica do lado de fora deste circuito de amor e perdão, recusando-se a entrar.    pe. Saverio