Este blog exibe um conteúdo 100% católico e é administrado pelo pe. Saverio Licari. Através da arte e da iconografia oriental deseja-se divulgar a Palavra Eterna de Deus pelos novos areópagos do homem contemporâneo. Com efeito, a encarnação de Cristo é o fundamento iniludível da representação de Deus em forma humana.

Iconostásio 
A influência da cultura e da filosofia grega  na imagem cristã  
Se para o judaísmo a manufatura de imagens tinha uma conotação negativa, ao ponto de ser considerada como idolatria, o pior dos pecados, para os gregos a imagem tinha uma função central. Ela encerrava em si um caráter misterioso e até mágico.  Algumas estátuas, como aquela de Ártemis e Atenas em Éfeso, eram consideradas  acheiropoites (não feitas por mão humana) e tinham origem milagrosa.
O trato sincretista do contexto cultural grego se manifestava em vários níveis e revelava uma sociedade em crise e sem perspectivas. A mudança da sociedade, de cidade-estado à concepção de Império a partir do I século, deixara um clima cultural de grande inquietude e um desejo generalizado de salvação. O sistema filosófico, criado pela própria civilização grega, não respondia mais aos anseios do novo contexto social e, além do mais, ele era impregnado de noções pagãs e influenciado pelo avanço da cultura do Império romano do Ocidente. E será como resposta a essa necessidade do absoluto que o cristianismo das origens se apresentará na cena cultural helênica para veicular, com as devidas adaptações de linguagem e método, a mensagem evangélica cuja proposta se apresentava interessante para a cultura grega já em crise. 
A cultura clássica da antiguidade representou um modelo inicial para a nova concepção artística cristã, mesmo que ela devesse ser purificada daquele trato idolátrico e pagão inerente à representação antropomórfica da divindade.  Mas, a arte cristã não  cristianizou a imagem e a estatuária pagã, como alguns insinuam até hoje, ela foi mais além, conseguiu imprimir na imagem e na arte em geral a essência profunda do Evangelho sem por isso paganizar a Boa-Nova do cristianismo. Aos poucos, movidos pelo desejo de evangelizar, os cristãos construíram e elaboraram o seu próprio universo simbólico e artístico.[1]
A iconografia nasce nas catacumbas dos primeiros cristãos para os quais as representações visuais tinham um significado bem diferente daquelas dos pagãos. Por exemplo, o peixe, do grego ichthús, que para os pagãos simbolizava a fecundidade, para os cristãos representava a fórmula do Credo; com efeito, nas letras que formam a palavra peixe, são sintetizadas as iniciais da antiga fórmula da profissão de fé: Jesùs Christòs Theoù Yiòs Sotèr (Jesus-Cristo-Filho-de Deus-Salvador).[2] 
As catacumbas romanas oferecem-nos um mostruário bastante articulado e significativo de imagens e cenas referentes ao Antigo e Novo Testamento. Nelas encontramos a cena de Noé na arca, Daniel na cova dos leões, os três jovens na fornalha, Jonas expulso do monstro marinho, Moisés que faz jorrar água da rocha no deserto etc. Do Novo Testamento encontramos cenas da vida de Cristo, a sua infância, a manifestação dos Magos, os seus milagres e, também, imagens simbólicas da própria pessoa de Jesus como Deus-Homem. Imagens multifacetadas como a do Bom Pastor, do Cristo Pescador, Mestre Taumaturgo, Imperador etc. Outros símbolos evocam os mistérios do Batismo e da Eucaristia.[3]
Podemos afirmar com toda a propriedade que no centro da iconografia cristã é marcadamente visível a figura de Cristo percebida em todas as suas facetas humanas e divinas. A iconografia confirma a fé dos primeiros cristãos na dúplice natureza de Cristo: humana e divina. A imagem iconográfica do III e IV século resulta, deste modo, inteiramente cristológica e cristocêntrica, não existindo ainda de fato uma iconografia mariana ou dos santos antes do século V.
Além da influência das culturas existentes, a nova fé deve confrontar-se com as categorias filosóficas da época e com a cultura tardo-antiga. Há evidencias no cristianismo de pontos de contato com a filosofia platônica: dualismo entre os dois mundos, (visível e invisível, o invisível é melhor porque perfeito); princípio unitário transcendente que gerou o mundo visível; necessidade de um percurso de ascese purificatório para ingressar no mundo celeste; necessidade de uma mediação para chegar ao mundo das ideias[4]. Na Sagrada Escritura se encontram muitos textos que se aproximam desta visão platônica do mundo e de Deus. Na reflexão patrística, sempre sustentada pela Sagrada Escritura, também, se encontram vários pontos de contato com a filosofia platônica: Cristo é o novo Adão, Arquétipo perfeito, Logos do Pai; nas duas naturezas de Cristo se conjugam perfeitamente o mundo celeste e o mundo terrestre; a encarnação rende visível o rosto do Deus invisível; a natureza humana é deificada pela vinda de Deus no mundo[5].
O cristianismo nascente sentia a necessidade de possuir uma linguagem própria capaz de expressar a sua fé. Essa será a função da Sagrada Escritura, da imagem sagrada do ícone e da própria Igreja. A linguagem simbólica iconográfica supera a força da palavra falada e introduz no mundo da intuição e da verdade. A imagem expressa,  revela e ilumina a palavra escrita (por exemplo, o mistério trinitário e o ícone da Trindade veterotestamentária de Andrey Rüblev). E não só isso, a imagem envolve, também, o âmbito emotivo-psíquico e sensível, facilitando o ingresso no mundo invisível e à experiência pessoal de Deus. A arte dos primeiros cristãos não surge do nada, ela é testemunho vivo de um espírito novo, o resultado de uma evolução que se verifica em contato com as culturas do mundo antigo.  Pe. Saverio Licari




[1]Cf. PRIGENT, P. L´arte dei primi cristiani. L´ereditá culturale e la nuova fede. Roma: Arkeiros, 1997. No texto todo o autor explora a capacidade dos cristãos de apropriar-se de algumas imagens pagãs purificando-as de elementos míticos e ao mesmo tempo introduzindo elementos novos que expressassem a originalidade da revelação bíblica. 
[2]LICARI, Saverio. O ícone uma escola de oração. São Paulo: Loyola, 2010. p. 27.
[3]Cf. MENOZZI, Daniele. La chiesa e le immagini. Cinisello Balsamo (MI). San Paolo, 1995. p.12.
[4]Cf. BETTETINI, Maria. Contro le immagini. Le radici dell´iconoclastia. Bari: Laterza, 2007. p.12-15. 
[5]Cf. EVDOKÌMOV, Pavel Nikolàjevic. Teologia della bellezza. L´arte dell´icona. Cinisello Balsamo (MI). San Paolo: 1990.  p. 37.

           
Sinagoga de Dura-Europos (séc. III)
A INFLUÊNCIA DO JUDAÍSMO NA IMAGEM CRISTÃ


O Judaísmo constitui a raiz e a base do cristianismo. É no contexto judaico que o cristianismo se desenvolve. Jesus era judeu, assim como os Apóstolos. A atitude judaica diante da imagem é, em geral, negativa. O judaísmo é uma religião anicónica, a imagem era vetada, a própria Torá proibia a confecção de imagens. Deus não pode ser representado porque é o Totalmente Outro, o Deus Todo Poderoso, o Indizível e o Impronunciável. Essa proibição é baseada no Livro do Pentateuco: “Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra” (Ex, 20,3-4); mas Êxodo 20, 23 e Deuteronômio 27,15 parecem limitar esta proibição à representação dos deuses, isto é, dos ídolos. De fato, no judaísmo, nem todas as representações figurativas eram proibidas, como mostra o episódio da serpente de bronze (Nm 21,4-9) e, sobretudo, as ordens da confecção dos querubins na Arca da aliança: “Farás dois querubins de ouro, de ouro batido os farás, nas duas extremidades do propiciatório” (Ex 25,18), ordens que se repetiram na construção do Templo de Salomão (1Rs 6,23).
A proibição das imagens visava preservar o povo de Israel do perigo da idolatria.[1] Mas, em geral, a cultura judaica se mostrava tolerante com as imagens, prova disso é a descoberta, no próprio território de Israel, da Beit Alpha, uma sinagoga do VI século decorada com mosaicos representando a Arca da aliança, os signos do zodíaco, o sacrifício de Isaac, etc.
Os judeus da diáspora, sobretudo, viviam em um ambiente cultural onde a imagem exercia uma função de grande importância e, portanto, eram mais abertos à aceitação da imagética religiosa. O exemplo mais célebre é a Domus Ecclesiae de Dura-Europos, (Mesopotâmia, séc. III d.C.), na atual Síria do Norte, onde são representados  inteiros ciclos de histórias da Bíblia: a história de Moisés, de Elias, de Daniel e outros personagens do Antigo e Novo Testamento. A Domus Christiana de Dura-Europos é a primeira casa utilizada exclusivamente para o culto cristão que chegou até nós. Situada perto do rio Eufrates, foi fundada, provavelmente, pelos macedônios de Alexandre Magno. Conquistada pelos romanos tornou-se uma guarnição militar. Depois da invasão persa foi abandonada (256-257 d.C.).
Dura Europos serviu para diversas funções religiosas. Hospedou inicialmente cultos pagãos, depois se tornou uma Sinagoga judaica e uma Igreja cristã. Uma característica importante da Domus Christiana é o batistério com os seus belíssimos afrescos que nos transmitem informações preciosas sobre a arte e a vida daquela época. Aos poucos foi se estruturando um lugar de culto específico e não mais improvisado, um edifício público de culto e não mais um edifício privado. Depois que o cristianismo  tornou-se a religião oficial do Império o espaço sagrado para o culto sofreu uma ulterior evolução. Alguns edifícios da administração pública, geralmente usados como tribunais, foram utilizados como edifícios de culto. Assim, nascem as primeiras Igrejas, as Basílicas. A Domus Christiana de Dura Europos e as Catacumbas Romanas são as atestações arqueológicas mais antigas que conhecemos e por isso de extrema importância para o estudo da iconografia cristã. “A tradicional tese segundo a qual os cristãos das origens tinham herdado do mundo judaico uma total rejeição das imagens não pode mais ser sustentada hoje”.[2] 
A proibição da norma veterotestamentária de confeccionar imagens tinha sido aplicada com descontinuidade ao longo da história judaica. Nos períodos de efetivo perigo de contaminação com os povos idolátricos se afirmava a interdição absoluta, em outros momentos se manifestava uma certa liberdade. 
Historicamente os cristãos não esperaram o Edito de Constantino (313) para criar pinturas destinadas a ilustrar os mistérios da nova religião. A proibição do judaísmo foi rapidamente superada porque os cristãos entenderam cedo que a imagem desenvolvia um papel fundamental na propagação do cristianismo e o mandato missionário de Cristo era um imperativo categórico para a nova religião. A própria proliferação de imagens é prova eloquente da superação, por parte dos cristãos, das proibições do Antigo Testamento e do perigo da idolatria. 
Pe. Saverio Licari





[1]Cf. MENOZZI, Daniele. La chiesa e le immagini. Cinisello Balsamo (MI). San Paolo: 1995. p. 11.
[2]Ib. cf. p. 11.