Este blog exibe um conteúdo 100% católico e é administrado pelo pe. Saverio Licari. Através da arte e da iconografia oriental deseja-se divulgar a Palavra Eterna de Deus pelos novos areópagos do homem contemporâneo. Com efeito, a encarnação de Cristo é o fundamento iniludível da representação de Deus em forma humana.

GÊNESE E FORMAÇÃO DA IMAGEM CRISTÃ (4)


1. O ÍCONE ENTRE MITO, TRADIÇÃO E HISTÓRIA

Desde o aparecimento do ícone na história da Igreja, este não é considerado como uma mera obra artística. Os primeiros iconógrafos tratavam de retratar com cores e formas o que os Evangelhos expressavam com palavras. Para tanto, o ícone devia formular a sua identidade própria e se propor como uma forma específica de arte, distanciando-se de todas as outras manifestações de arte profana ou mesmo religiosa.
Uma lenda siríaca está na origem do primeiro ícone chamado acheiropoites (não feito por mão humana), segundo a qual o primeiro ícone de Cristo foi enviado pelo próprio Cristo ao rei Abgar V Uchama, príncipe de Osroeme, cuja capital era Edessa. O rei Abgar, doente, sofria muito e mandou o seu arquivista Ananias à procura de Jesus para pedir-lhe que o curasse. O próprio Jesus tomou um pano, colocou-o sobre o seu rosto imprimindo nele os seus traços. Esse tecido foi chamado de Mandylion (do árabe, lenço, toalha). Quando o rei olhou para a sagrada imagem ficou, imediatamente, curado.
Em seguida, o bispo de Edessa mandou que a efígie milagrosa fosse emoldurada para a veneração dos fiéis e passou a ser chamada de Sagrada face. Após muitas vicissitudes, em 944 os imperadores de Bizâncio, Constantino Porfirogeneta e Romano I, compraram a sagrada relíquia.
No dia 16 de Agosto celebrava-se a transferência do ícone para Constantinopla. Em 1204 a cidade foi saqueada pelos cruzados e a santa relíquia desapareceu. Foi nessa época que nasceram, no Ocidente, as lendas relativas a uma santa mulher que, ao enxugar o rosto de Cristo a caminho do Gólgota, teria imprimido sobre um pano traços de seu rosto sofrido: trata-se do famoso véu da Verônica, cujo nome significa apenas verdadeira imagem.[1]
Segundo o mito, portanto, o primeiro ícone tem como autor o próprio Jesus. A lenda confirma o que será demonstrado no segundo capítulo deste trabalho: A encarnação de Cristo, o seu aparecimento na terra é o fundamento teológico iniludível do ícone. O semblante do Senhor não pode ser representado, a sua imagem não pode ser capturada em uma forma, fruto do engenho humano. A sua imagem, dom do amor do Pai, presença de Deus no meio dos homens, é Kénosis (rebaixamento) de Deus.
A partir destas palavras, podemos entender como o ícone não é uma imagem qualquer, não é uma forma de arte religiosa, mas, se insere no próprio mistério da Revelação. Com efeito, desde o inicio do cristianismo, o ícone sagrado, antes de chegar à sua definição dogmática e iconográfica que conhecemos hoje, teve que percorrer um longo caminho de controvérsias, de diatribes iconoclásticas para se afirmar como imagem teológica e caminho de salvação.
Em sua origem, o ícone, teve que se deparar com um cenário histórico complexo, dentro do qual conviviam mentalidades e culturas diferentes. A formação do universo simbólico cristão sofreu a influência do Judaísmo, do helenismo, do Império romano e do paganismo. É preciso percorrer os traços característicos essenciais dessas influências para podermos entender melhor o desenvolvimento teológico do ícone na história da Igreja.  Pe. Saverio Licari



[1]Cf. LELOUP, Jean-Yves. O ícone uma escola do olhar. São Paulo: Unesp, 2005. p. 26.

GÊNESE E FORMAÇÃO DA IMAGEM CRISTÃ (3)


A imagem era uma modalidade de expressão tipicamente humana, uma forma de comunicação simbólica que, antes da escrita e da linguagem, diferenciava o ser humano dos outros seres vivos. Nesse sentido, talvez, o homem deveria ser definido mais exatamente como animal symbolicum, em vez de animal rationale. Essa definição, segundo Ernst Cassirer, um dos filósofos responsáveis pela recuperação da relevância filosófica da noção de símbolo do século XX, responde melhor a uma visão mais abrangente do fenômeno humano por abarcar o mito, a religião, a arte, a linguagem, a história e a ciência.[1]
Toda a manifestação simbólica e/ou cultural, enquanto construção tipicamente humana supõe uma força espiritual peculiar que a faça aparecer. Tal força, se pensamos dentro de uma prioridade ontológica e mesmo histórico-evolutiva, é a imaginação”.[2] A imaginação humana revela a experiência religiosa primordial através de imagens e símbolos ancestrais, rudimentares e antropomórficas. As imagens representavam, como num sonho, o universo inconsciente e transcendental do ser humano e o punham em contato com o mundo desconhecido.     
A formação do universo imagético religioso cristão está ligada, também, à visão religiosa do Egito. Os egípcios colocavam no rosto do defunto, depois do processo de mumificação, uma máscara mortuária que reproduzia o semblante do defunto. Esta técnica foi se aperfeiçoando, ao ponto, que, já antes do cristianismo, existiam verdadeiros ateliês de retratos funerários. O retrato do defunto, colocado em cima do rosto mumificado, tinha a função de mediar o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. A imaginação, concretizada numa imagem ou num símbolo, facilitava este trânsito. No século XX Padre Pavel Florenskij, teólogo, matemático e teórico da arte, define o ícone como “A janela sobre o mistério” e os Padres da Igreja oriental, defensores das imagens (ícones), o definem como “Janela aberta para o invisível”. Os retratos de Fayoum (região do Cairo atual) são um testemunho vivo desta arte primitiva. Essas pinturas funerárias egípcias que inspiraram a iconografia cristã das origens, constituem um corpus orgânico de pinturas antigas (mais de 750 retratos) que chegaram até nós, datáveis entre o I e o IV século d.C. As primeiras imagens de Cristo foram feitas em encáustica (pintura confeccionada com cera de abelha) sobre madeira, da mesma forma que os retratos funerários egípcios. A arte sagrada dos ícones decorre desse histórico primordial.
       A imagem cristã é um evento extraordinário e específico profundamente radicado nas culturas em que a Igreja das origens se estabeleceu e viveu e, ao mesmo tempo, é um fato totalmente novo, imprevisto e revolucionário no que diz respeito às culturas estabelecidas e à própria fé dos primeiros seguidores de Jesus de Nazareth. Pe. Saverio Licari 


[1]Cf. CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo:   Martins Fontes, 1994. In: BARRETO, M, A. Imaginação simbólica Reflexões introdutórias. Coleção FAJE. São Paulo: Loyola, 2008. p. 13.  
[2]BARRETO, M, A. Imaginação simbólica. Reflexões introdutórias, Coleção FAJE. São Paulo: Loyola, 2008, p. 14.